quarta-feira, 30 de setembro de 2015

As recordações da delegacia

Uma noite atípica. Mas não tão atípica assim, considerando que eu morava em um grande cidade nessa época. Eu tinha perdido alguns documentos, e estava na delegacia, prestando contas dessa minha desatenção. Burocracias que nunca mudarão, eu acho. Mas o que eu mais lembro daquele dia não é do policial, ou do delegado, me fazendo perguntas idiotas sobre como eu achava que tinha perdido meu passaporte. Lembro pouco do café morno que me serviram enquanto eu esperava horas sem fim para emitir um simples papel, comprovando a estupidez da perda dos meus documentos. Tudo bem, é assim mesmo.
O que eu me lembro é de um homem, um senhor já, com a cabeça repleta de cabelos brancos e uma postura já curvada, herança do peso dos anos. Ele estava inquieto e, na falta de coisa melhor para fazer, eu comecei a prestar atenção nos seus passos. Ele andava rápido, considerando uma possível artrose do joelho, que o fazia mancar vez ou outra. Com isso, logo supus que ele esperava o filho ou, mais provável ainda, o neto. Algum adolescente bêbado, que tinha sido pego pela polícia. Ou quem sabe tinha feito algo mais grave. Finalmente, ele conseguiu interceptar um policial, que passava com uma pressa totalmente fora de sincronia com a demora que eu e o velho estávamos presos.


Minha aliança de casamento, ele disse. Uma voz rouca, estragada pelo cigarro e pelo frio que fazia naquele dia. O policial lançou a ele um olhar de pouco caso e seguiu seu rumo, em meio à salas cheias de papel e casos arquivados.


Aliança, eu me perguntei. Ah, claro. Esse pobre senhor foi assaltado, e os bandidos sem coração levaram do pobre homem sua única jóia. A aliança estimada, que selara o compromisso de um casamento com uma mulher que os anos o ensinaram a amar mais do que a própria vida. Me perdi em mil possíveis poesias sobre a perda daquela aliança e da perda do símbolo da união que, de repente pela falta de dinheiro, não poderia ser renovado. Ou, mesmo se pudesse, não teria o mesmo valor .


Fui chamada até a sala e, depois de assinar alguns muitos papeis, simplesmente porque perdi uns documentos, ele estava sentado na cadeira. O joelho deve ter reclamado daquela andança sem fim.


Por pura curiosidade, resolvi me sentar ao seu lado. Esperando talvez um relato apaixonado e um senso de justiça que só os apaixonados entendem. Eu não estava apaixonada naquela época, e pensei em viver um amor pela história dos outros. Uma poesia de terceiros que eu transformaria em um conto, assim que chegasse em casa.


Muitos minutos de silêncio depois e ele começou a falar. Falou coisas sem sentido no começo, algo como uma prisão injusta, já que ninguém tinha a intenção de fazer mal. Ele me perguntava, eu assentia, mesmo sem entender bem do que se tratava. Mas e a aliança? Me dei a liberdade de perguntar.
Ele riu um riso sem alegria e sua postura ficou ainda mais curvada.
Agora veja só, minha filha, ele começou. Minha mulher, com quem sou casado há quarenta anos, está presa. Mas ela vai sair na semana que vem. Mas mandaram um comunicado para nossa casa, dizendo que perderam a aliança de casamento dela.
A perda era irreparável, eu sabia bem. Nada se encontra nesse abismo de papeis e cafés mornos.
Ele chorou um pouco e depois riu. A Amélia vai sair desse lugar em uma semana e que aliança ela vai usar?


Não perguntei o porquê dela estar presa, e isso nem me importava. E a aliança, eu perguntei. Ele disse que de repente poderia comprar outro anel, mas não seria o mesmo.
Claro que não, eu disse. Uma nova aliança jamais terá quarenta anos.


Talvez a gente precise reinventar o amor. À essa altura da vida. Como a vida nos traz surpresas, não é?

Não digo que aprendi a lição de ver o lado bom de tudo depois desse acontecimento. Maldito sistema penitenciário.

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